7 de abril de 2012

Gilka Machado: Uma poética do desejo...

Nascida em 1893, Gilka Machado teve a sua formação literária dentro dos princípios doutrinários e estéticos do Simbolismo, em um período em que várias correntes estilísticas formavam uma espécie de encruzilhada de estilos que disputavam espaço no imaginário dos poetas, prolongando-se até o advento do Modernismo brasileiro.
Mulher muito avançada para a época em que viveu, inteligente e independente, não admitia mordaças moralizadoras no que escrevia, produzindo poesias ousadíssimas que representavam um desafio aos códigos morais e a estreiteza de visão dos falsos moralistas da sociedade nos primeiros decênios do segundo milênio.
Suas poesias falam sobre coisas até então nunca abordadas na literatura de autoria feminina, inaugurando na poesia brasileira de então o discurso sobre a condição feminina, falando de forma explícita e transgressiva, para a época, sobre o desejo da mulher de se libertar dos espartilhos que lhe impôs a milenar moral machistas, recusando-se a seguir o “modelo” de poesia considerado adequado às mulheres, ou seja: a poesia de louvação à virtude e de elogio à beleza femininas, sempre ingênua e pura, de queixumes por amores impossíveis e outras puerilidades de cariz romântico.
Nesse tipo de poesia praticada pelas mulheres, o que predominava, como se pode ver, era a expressão de um romantismo já dessorado e deslocado no tempo, ameaçando perpetuar temáticas delicadas e sentimentais, de uma superficialidade aflitiva. Gilka, como a poeta portuguesa Florbela Espanca, sua contemporânea, fugiu a este modelo padrão, para adentrar corajosamente o universo mais libertário dos Simbolistas.
Sua adesão ao Simbolismo levou-a a produzir poesias que lhe valeram críticas severas dos que as consideravam escandalosas e atentatórias aos bons costumes, em razão do seu explícito erotismo, da sensualidade que cintilava em cada um dos seus versos. Para a sociedade puritana do começo do século XX era inadmissível e intolerável a publicação de poesias que davam voz às pulsões dos sentidos, aos desejos do corpo e à paixão ardente da mulher.
Gilka não se intimidou nem recuou diante das pressões, dando continuidade a um estilo pessoal que, por sua irrefutável qualidade, levaram-na a ser eleita “a maior poetisa do Brasil”, em concurso realizado pela revista O Malho, em 1933, na cidade do Rio de Janeiro. Mais tarde, o crítico Péricles Eugênio da Silva Ramos, afirmou que a autora foi a maior figura feminina do Simbolismo brasileiro, em cujos princípios doutrinários a poeta se integrava notadamente com duas das suas obras: os livros, Cristais Partidos e Estados de Alma. A seguir, algumas poesias da grande poeta brasileira. Talvez cause estranheza o vocabulário raro e culto da poeta, típico da poesia simbolista.

Esboço

Teus lábios inquietos
pelo meu corpo
acendiam astros...
e no corpo da mata
os pirilampos
de quando em quando,
insinuavam
fosforecentes carícias...
e o corpo do silêncio estremecia,
chocalhava,
com os guizos
do cri-cri osculante
dos grilos que imitavam
a música de tua boca...
e no corpo da noite
as estrelas cantavam
com a voz trêmula e rútila
de teus beijos...
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Que gozo sentir-me em plena liberdade
longe do jugo atroz dos homens e da ronda
da velha Sociedade.
-a messalina hedionda
que, da vida no eterno carnaval,
se exibe fantasiada de vestal!
[…]
Esta alma que carrego amarrada, tolhida
num corpo exausto e abjeto,
há tanto acostumado a pertencer à vida
como um traste qualquer, como um simples objeto,
sem gozo, sem conforto,
indiferente como um corpo morto,
[…]
Quando longe de ti, solitária, medito
neste afeto pagão que envergonhada oculto.
vêm-me às narinas, logo, o perfume esquisito
que teu corpo desprende e há no teu próprio vulto.
A febril confissão deste afeto infinito
há muito que, medrosa, em meus lábios sepulto,
pois teu lascivo olhar, em mim pregado, fito,
à minha castidade é como que um insulto.


LÉPIDA E LEVE

Lépida e leve
em teu labor que, de expressões à míngua,
o verso não descreve...
Lépida e leve,
Guardas, ó língua, em teu labor,
gostos de afago e afagos de sabor.

És tão mansa e macia,
que teu nome a ti mesma acaricia,
que teu nome por ti roça, flexuosamente,
como rítmica serpente,
e se faz menos ruído,
o vocábulo, ao teu contato de veludo.

Dominadora do desejo humano,
Estatuária da palavra,
ódio, paixão, mentira, desengano,
por ti que incêndio no Universo lavra!...
És o réptil que voa,
o divino pecado
que as asas musicais, às vezes , solta, à toa,
e que a Terra povoa e despovoa,
quando é de seu agrado.

Sol dos ouvidos, sabiá de tato,
ó língua-idéia, ó língua-sensação ,
em que olvido insensato,
em que tolo recato,
te hão deixado o louvor, a exaltação!

- Tu que irradiar pudeste os mais formosos poemas!
- Tu que orquestrar soubeste as carícias supremas!
Dás corpo ao beijo, dás antera à boca,
és um tateio de alucinação,
és o elastério da alma... Ó minha louca
língua, do meu Amor penetra a boca,
passa-lhe em todo senso tua mão,
enche-o de mim, deixa-me oca...
- Tenho certeza, minha louca,
de lhe dar a morder em ti meu coração!...

Língua do meu Amor velosa e doce,
que me convences de que sou frase,
que me contornas, que me vestes quase,
como se o corpo meu de ti vindo me fosse.
Língua que me cativas, que me enleias
os surtos de ave estranha,
em linhas longas de invisíveis teias,
de que és, há tanto, habilidosa aranha...

Língua-lâmina, língua-labareda,
Língua-linfa, coleando, em deslizes de seda...
Força inferia e divina
faz com que o bem e o mal resumas,
língua-cáustica, língua-cocaína,
língua de mel, língua de plumas?...
Amo-te as sugestões gloriosas e funestas,
amo-te como todas as mulheres
te amam, ó língua-lama, ó língua-resplendor,
pela carne de som que à idéia emprestas
e pelas frases mudas que proferes
nos silêncios de Amor!...

Volúpia

Tenho-te, do meu sangue alongada nos veios,
à tua sensação me alheio a todo o ambiente;
os meus versos estão completamente cheios
do teu veneno forte, invencível e fluente.

Por te trazer em mim, adquiri-os, tomei-os,
o teu modo sutil, o teu gesto indolente.
Por te trazer em mim moldei-me aos teus coleios,
minha íntima, nervosa e rúbida serpente.

Teu veneno letal torna-me os olhos baços,
e a alma pura que trago e que te repudia,
inutilmente anseia esquivar-se aos teus laços.

Teu veneno letal torna-me o corpo langue,
numa circulação longa, lenta, macia,
a subir e a descer, no curso do meu sangue.

Gilka Machado foi das mais importantes pioneiras que se insurgiram contra a interdição à poética do desejo e à expressão da linguagem do corpo.
Dados biográficos: Gilka da Costa de Melo Machado natural do Rio de Janeiro, nasceu em 1893 e faleceu em 1980. Foi casada com o poeta Rodolfo de Melo Machado. Em 1915, fez a sua estréia na cena literária com o livro de poesias, Cristais Partidos. No ano seguinte, publicou sua conferência, A Revelação dos Perfumes, seguindo-se outras publicações, como Estados de Alma (1917); Poesias (1918); Mulher Nua (1922); O Grande Amor (1928); Meu Glorioso Pecado (1928); Carne e Alma (1931). Em 1932, a autora publicou seu primeiro livro fora do Brasil, em Cochabamba, na Bolívia, Sonetos y Poemas de Gilka Machado, uma antologia prefaciada por Antonio Capdeville. Em 1933, Gilka foi eleita "a maior poetisa do Brasil", por concurso da revista O Malho, do Rio de Janeiro. De 1938 a 1968, a poeta publicou Sublimação, Meu rosto e Velha Poesia. Dez anos depois foram dadas ao público suas Poesias Completas e reeditadas em 1991.

Autora: Zenóbia Collares Moreira 


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