22 de novembro de 2011

José Régio: Cântico Negro.

 José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde, em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta, que se impôs. Com o livro de estreia "Poemas de Deus e do Diabo" (1925), apresentou quase todos os temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.

"Vem por aqui" --dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
--Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios,
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei para onde vou,
Não sei para onde vou
--Sei que não vou por aí!

COMENTÁRIO

Dotado de expressiva força dramática Cântico Negro afirma-se como um grito de revolta e sede de liberdade bem típico dos adeptos do movimento Presença, do qual José Régio foi um exponencial. Vale, no entanto, salientar que nem todos os poetas presencistas lograram elaborar um poema com a sua força retórica, veemência poética e eloqüente teatralidade.
A temática desenvolvida em Cântico Negro já fora desenvolvida por Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, no seu célebre poema Lisboa Revisitada. Em ambos se faz presente a mesma energia transgressiva, a mesma rebeldia em relação a um mundo que parece ter parado no tempo, arrastando consigo, para a estagnação, a expressão poética.
Régio rejeita a herança literária dos que o antecederam, despreza o que é fácil e sem novidades, desdenha seguir por caminhos abertos por outros e as limitações de modelos já dessorados. Em lugar de tudo isto, dá seu grito de independência, defende seu direito de abrir seus próprios caminhos, colocando-se contra um sistema que esmaga a identidade pessoal, que em nome da moral, dos costumes da lei e de um conjunto de regras priva o homem seu poder decisório, impondo-lhe condutas, negando-lhe a legitimidade do direito de ser livre para escolher, decidir e descobrir de acordo com sua apetência pessoal, sua particular visão de mundo.
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Zenóbia Collares Moreira

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