1 de janeiro de 2011

O lirismo cultista de D. Francisco Manuel de Mello



Parto, parto-me enfim, Senhora minha;
O fado o quis assim, que nos reparte.
Mas quem cuidareis vós que é que parte?
Parte aquele que só partir convinha.


E verdade que parte o que caminha,
Mas parte-se e caminha por tal arte.
Que cá vos deixa aquela ilustre parte,
Que não terá melhor, nem melhor tinha.

Ao céu, ao mar, ao vento, ao lenho, ao linho,
A vida entregarei, que os satisfaça.
Temo quem dos perigos não tem medo.

A vinda temo mais do que o caminho,
Porque, para me dar maior desgraça,
Sei que me há-de trazer a Sorte cedo.

Soneto tipicamente barroco, habilmente construído pelo grande poeta D. Francisco Manuel de Mello, conforme os princípios do Cultismo, estilo que corresponde ao jogo de palavras e imagens, visando ao rebuscamento da forma do texto, à ornamentação e à erudição vocabular.
Neste soneto, o autor lança mão do jogo com as palavras, mais precisamente, com o verbo partir significando tanto o ato de “ir embora”, como a fragmentação interior gerada pelo conflito instaurado por dois sentimentos opostos: a necessidade imperiosa de partir e o desejo desesperado de ficar. Soma-se a esse jogo de palavras termos derivados do verbo partir, como o verbo “repartir” (com o sentido de separar, apartar) , o substantivo “parte”, além de metáforas revestidas de opacidade que obscurece o sentido e exige maior esforço mental aos que lêem o soneto.
Se atentarmos para a mensagem do texto, veremos que se trata de uma poesia de amor impossível do eu-lírico por uma “Senhora” inacessível ou indiferente ao seu sentimento. Depreende-se que a partida do apaixonado homem foi determinada pela conveniência da dama, quiçá casada, que o deseja bem longe de si (como convinha).
O eu - lírico declara que parte com a alma e o coração partidos (Parto, parto-me), conforme determinou “o Fado” que os separa (reparte). Todavia, declara que apenas seu corpo partirá, como “convinha”, parte apenas a parte de si mesmo que é visível, mas partirá vazia, porque deixará sua alma com a Senhora amada. Deixar-lhe-á “aquela ilustre parte” de seu ser, o que nele há de melhor para lhe oferecer.
O discurso de despedida do eu - lírico configura-se como uma tentativa de sensibilizar a “Senhora” e, quiçá, de fazê-la se sentir culpada por sua desgraça e eventual morte, na arriscada viagem, realizada em uma embarcação à vela, ao sabor dos caprichos do vento e do mar revolto (Ao céu, ao mar, ao vento, ao lenho, ao linho, / A vida entregarei, que os satisfaça). A consciência do perigo que o ameaça não esmorece o ímpeto de afastar-se, mesmo sabendo que poderá perder a vida (Temo quem dos perigos não tem medo).
Para esse homem que padece do mal do amor impossível, a partida é menos cruel que um eventual retorno, pois, para ele, desgraça ainda maior é a certeza de que “a Sorte” (o destino) o trará de volta sem que tenha esquecido a sua desdita, sem que tenha a esperança de ter o amor da sua senhora..




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