19 de janeiro de 2011

Na mão de Deus, soneto de A. de Quental




Na mão de Deus, na sua mão direita,


Descansou afinal meu coração.

Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita

A ignorância infantil, despojo vão,

Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,

Que a mãe leva no colo agasalhada

E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto…

Dorme o teu sono, coração liberto,

Dorme na mão de Deus eternamente!
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COMENTÁRIO
Esse soneto, escrito na maturidade do poeta, quando já estava doente da depressão que o levaria ao suicídio, é singularíssimo, considerando ser Antero ateu. Nele, o eu-lírico afirma-se livre do mundo ilusório e efêmero do Ideal e da Paixão que moveram seus arroubos da mocidade. Libertou o coração, desceu a escada estreita da Ilusão que lhe propiciara tanta angústia e sofrimento, abandonou o mundo das aparências, das coisas perecíveis e imperfeitas encontrou a paz nirvânica que buscava sob a proteção de Deus.

Os versos do último terceto revelam através de uma imagem mística a plenitude da paz que serena o coração do poeta, enfim "liberto" a dormir na mão de Deus eternamente…
Dizem os biógrafos de Antero que este havia pedido a Oliveira Martins que lesse esse soneto no momento de sua morte. Infelizmente seu pedido não pode ser atendido, porque o poeta morreu sozinho, no banco de uma praça, onde acabou a sua atormentada e infeliz vida, com um tiro de revólver no ouvido.


Zenóbia Collares Moreira

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