2 de dezembro de 2010

Experimentalismo e sensualidade na poesia de Salette Tavares



Nascida em 1922 em Lourenço Marques, Salette Tavares, licenciou-se em Ciências Históricas e Filosóficas pela Universidade Clássica de Lisboa, em 1948. Foi bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian e do Conselho Superior de Investigações Científicas, da Espanha. Publicou vários livros de poesia.
O texto da autora, que vem a seguir, inscreve-se na linha poética da poesia experimental que, como se sabe, não obedece fielmente aos princípios da poesia concreta, da qual se originou, pelo fato de instituir-se como poesia aberta às novas experiências, tanto no que diz respeito aos aspectos visuais, quanto aos morfológico.
O poema "Poética", de Salette Tavares, inscreve-se na vanguarda, na medida em que rompe o automatismo que respalda a obra de arte tradicional, com o qual o leitor estava habituado. Daí a sua leitura ser um desafio a seguir outros caminhos em sua busca de uma leitura que o conduza a decodificação da mensagem. O texto da poetisa exemplifica com bastante precisão a dimensão da mudança provocada pela poesia experimental.

POÉTICA
Espelho mudo.....................lugar reflecte
..............................................o todo que me é dentro

Espelho cego ......................lugar repete
.............................................a voz que me é centro.

Espelho mundo .................lugar intenso,
.............................................nos braços já, te prendo.

Espelho nego .....................lugar suspenso
.............................................um vidro só, relendo.
*
A leitura de Poética, um texto experimental, é diferentemente da que se realiza com os textos tradicionais, deve ser feita tanto do ponto de vista do significante, quanto do significado. No primeiro caso, a análise de palavras que são repetidas reiteradamente, como “Espelho” e “lugar”, bem como as que remetem para o significado, apontando para a função do espelho objeto, que se restringe a refletir apenas o que chega ao seu alcance.
Esse poema, produzido na fase inicial do experimentalismo poético, não permite que seja claramente percebida a desconstrução do discurso. Todavia, ao abrir-se para várias leituras, o texto assume a característica fundamental da poesia experimental. Vale observar a forma como é trabalhado o espaço visual no poema: nele há um objeto – o espelho -, que estabelece uma comunicação direta com o que reflete sua lâmina.
O interessante na leitura desse texto é o fato do leitor, confrontado com a sua “decifração”, assumir o papel de espectador ativo, responsável pela compreensão tanto do aspecto visual da poesia, quanto do seu aspecto sonoro, buscado na repetição de palavras e de rimas alternadas, que conferem ao texto uma marcação de ritmo forte, que aponta para o conteúdo crítico do poema.
Não reside no aspecto lúdico, que a forma do texto apresenta, o que motivou a sua composição. A autora, o que interessa é o conteúdo crítico que essa forma veicula, desde a escolha do título “Poética”. Este título é o instrumento usado pela autora para desmistificar a poética tradicional portuguesa, veementemente rejeitada pelos experimentalistas, sob a acusação de que ela insiste em dar continuidade a um tipo de poesia feita apenas para a fruição prazerosa, para deleite da emoção e do sentimento, sem se dar conta dos graves problemas de ordem cultural, social e econômico que ameaçavam levar Portugal à deriva.
Poética, numa dentre as suas múltiplas leituras, parece sugerir a quebra de um espelho que se restringe a ser um repetidor de imagens (espelho nego / lugar suspenso /em vidro só, relendo), que o poema nega, rejeita, por ser metáfora da criação poética tradicional, sugerindo um outro espelho que, além de refletir, possa, como um prisma, refratar as multifacetadas arestas, os diversificados ângulos de visão da poesia (espelho) em sua relação o que reflete (lugar) e refrata.
Na mesma coletânea de poemas - Espelho cego -, de Salette Tavares, várias poesias expressam a linguagem do corpo inflamado pelo desejo (não sei como vais aparecer / presença tão concreta anunciada / vibrando-me o corpo a estremecer) :
*
Minha cintura dorida
adeus suspenso sem beijo
enchem-me o peito de fome
geme silêncio o desejo
Espremem-se frutas os braços
Bebem-se vinho de Março
grandes e belos cabelos
com vento no regaço.
Alvorecer de um segredo
boca que a fruta pede
mar de ouro generoso
onde o meu barco se perde.
//
Aqui onde chegaste
a tua voz trocou-se,
diz-me
onde puseste
o amor com que te sei.
//
Meridiano do meu corpo
limite raíz
encharcada d´água
a respirar-me no peito.
//
Vela de cera acendida
no teu olhar que morreu
eu sei-me
água, terra, morte,
vida, cor do vento sobre a pele,
eu sei-te
luz do ar no meu cabelo.
//
Mas não é somente a sensualidade que transita nos versos da poetisa, também o amor sentimento se faz presente em sua poesia, expressando os anseios do coração expectante na espera impaciente do ser amado ou do seu gesto de ternura, acariciante (que é que a mim espera quando assim espero? (...) É a carícia da mão na minha face / e o meu olhar repousado / o sorriso que passa / rápido / de mim a ti.), ou ainda da fruição do prazer, o fim da espera (Bebi, / eu te bebi / meu leite vinho destino / meus braços cabelos sonhos / em manhãs de desatino).
Zenóbia Collares Moreira . O itinerário da poesia feminina em Portugal.


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