16 de junho de 2010

Cesário Verde - Contrariedades.




Cesário Verde é a maior expressão da poesia realista portuguesa. Ao longo de sua obra, o poeta polariza antiteticamente dois estratos sociais: a burguesia e o povo trabalhador. O mundo social focalizado em seus poemas completa o que ficou faltando no mundo social focalizado por Eça de Queirós, em seus romances. Com efeito, enquanto este voltou as suas atenções exclusivamente para a classe burguesa, Cesário, embora dando  continuidade à sátira irônica contra a burguesia, não exclui do seu discurso poético a massa popular que trabalha, muitas vezes, em condições miseráveis e sofre, silenciosamente, a cáustica desesperança de uma vida sem perspectivas.
Seus poemas se baseiam na realidade quotidiana, observada pelo poeta com o seu “modo especial de ver o mundo e a vida”. O olhar de Cesário, arguto e penetrante, vê a cidade e todo o seu drama, vibrando em cúmplice simpatia com o que lhe toca à sensibilidade ou em irreprimível repugnância à vista do que execra.

Contrariedades

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve conta à botica!
Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopéia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais uma redacção, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa
Vale um desdém solene.

Com raras excepções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e a paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingénuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua "coterie";
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimento finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exactos,
Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a "réclame", a intriga, o anúncio, a "blague",
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras...

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia..
Que mundo! Coitadinha

O poema "Contrariedades", tem início com o desabafo do poeta, em péssimo estado emocional, agitado, ansioso, neurastênico e com terrível dor de cabeça. Tudo isto permite-nos supor que a realidade que nos vai mostrar é sombria e pintada em cores negras.
Com efeito, o que vem a seguir é o seu verrinar contra a sociedade corrupta, injusta, desumana e decadente, representada tanto pela redação do jornal que rejeitou a publicação dos seus poemas, mas promove os medíocres, como pela situação de abandono e de miséria da vizinha tísica. Finalmente, na ultima estrofe, o poeta traça um paralelo entre a sua situação e a da engomadeira, concluindo que a pobre mulher esta muito pior que ele próprio.
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Zenóbia Collares Moreira Cunha


                                                

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