1 de maio de 2010

Fernando Pessoa: Autopsicografia





Fernando Pessoa era um poeta muito complexo, intensamente intelectualizado e dotado de rara genialidade. Autopsicografia é considerado uma espécie de profissão de fé pessoana acerca da gênese e da natureza do seu processo de criação poética.
Logo à primeira leitura do poema, fica evidente a divisão do mesmo em três partes bem definidas, correspondentes às três estrofes que o compõem. Observe-se que a primeira estrofe é fixada na imagem do poeta, não do poeta Fernando Pessoa, mas do poeta em sentido genérico. Ela traz, em seu verso inicial, uma afirmação taxativa de grande força expressiva que tanto define o que Pessoa pensa acerca do poeta enquanto criador, em seu processo de elaboração poética, quanto expõe a estranha idéia de que “O POETA É UM FINGIDOR”.

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Vale salientar que “FINGIR”, neste caso, não significa ser falso, mentiroso ou insincero. Não. O sentido do fingimento atribuído ao poeta radica numa sinceridade imaginária, da mesma natureza do “fingimento”. O ato de fingir, neste contexto, equivale a usar a imaginação criadora e transmutadora da realidade, sentida ou não, numa verdade poética.
Observemos que todo o poema lança mão dos elementos próprios da comunicação verbal: Um “emissor” (poeta) + uma mensagem (poema) + um receptor (leitor e decodificador da mensagem), abrindo um espaço fundamental para o leitor no processo criativo, anulando a idéia de que a criação poética seja um ato isolado e solitário do poeta, que exclui a cumplicidade do leitor e decodificador da mensagem contida no poema.
Isto posto, passemos a examinar os dois semas que transitarão pelas estrofes, ora referindo-se ao poeta, ora relacionando-se ao leitor: os semas “FINGE” e “DOR” que juntos tanto definem a natureza do poeta, quando a natureza do leitor, ambos “fingidores”.

Temos, assim, dois fingidores e cinco tipos de dores:
Da parte de poeta existem três dores:  A DOR SENTIDA (REAL)   A DOR FINGIDA ( a dor real transfigurada) e a A DOR ESCRITA.
Da parte do leitor existem duas dores:   A DOR LIDA (síntese da das dores do poeta), A DOR FINGIDA (a que eles não têm)

A dor sentida (real) do poeta é transformada poeticamente em dor fingida (imaginada) e esta em dor escrita. Por sua vez, o leitor desconhece as duas dores do poeta (a dor sentida e a dor fingida). Na leitura da dor escrita que este “sente bem”, não as duas dores que o poeta teve (sentida/fingida), mas a dor “que eles não têm”, ou seja: a sua dor também fingida. O leitor então é aquele que acredita na magia da linguagem. Lê a dor sentida/fingida/escrita/ e a assume como sua mesmo não sendo.
Em síntese, o que Pessoa deseja comunicar aos seus leitores é que a poesia não é um ato solitário, mas sim um ato solidário entre o poeta e seu leitor, é que a poesia não está na dor realmente sofrida (ou numa experiência realmente vivida), mas sim na habilidade do poeta para fingir a dor sentida, a dor real que o aflige, na certeza de que para se transforme em arte poética, ela deverá passar pelo imaginário, metamorfoseando-se em puro fingimento, expresso em linguagem poética, como roupagem da dor imaginada
Todavia, na segunda estrofe do poema, o poeta convoca a participação do leitor (aqueles que o lêem) nesse processo de elaboração poética. Como seu parceiro e cúmplice no fingimento.
A terceira estrofe se afirma como o ato final da elaboração poética, no qual participam a Emoção (coração e sensibilidade) e a Razão.  A Emoção é metaforizada na imagem de um “comboio de corda”, sempre a girar nas “calhas de roda”, visando entreter a disciplinada razão. 
Os pólos que estabelecem a oposição no processo criativo – a emoção e a razão – são os responsáveis pela dinâmica da poesia. O coração, como sede das emoções, das sensações e da sensibilidade que instituem a gênese da criação e a razão como centro da imaginação, do pensamento e das idéias que elaboram o poema. Logo, a poesia, segundo Pessoa, é um ato dinâmico entre a emoção e a razão.
Fica bem evidenciada a ênfase dada nesta última estrofe à função lúdica da poesia. Quer dizer que a poesia não é exteriorização imediata dos sentimentos. Estes passam por uma modelagem estética, Todo processo que constrói poesia é algo que é perpassado pela linguagem – não há experiência imediata. Esse é o “fingimento”, o poeta imagina algo que sequer imaginou em poesia.
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Autora: Zenóbia Collares Moreira Cunha


Um comentário:

Anonymous disse...

Pessoa é sempre um renovado prazer de leitura.