23 de dezembro de 2010

Fresta, poema de Fernando Pessoa



Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,

E tudo é névoas e muros

Quanto a vida dá ou tem,

Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou soterrado,

Vejo o longínquo horizonte

Cheio de sol posto ou nado,

Revivo, existo, conheço;
E, inda que seja ilusão

O exterior em que me esqueço,

Nada mais quero nem peço:

Entrego-lhe o coração.


Mesmo estando sob o efeito trevoso dos momentos de depressão, de melancolia, tomado pelo vazio interior que o angustia e o aparta do mundo, basta somente um instante em que veja o “longínquo horizonte” iluminado de sol poente ou nascente, para que o eu-lírico reviva, volte a existir e reconheça o mundo exterior.
E não importando se este é pura ilusão, sem desejar nada mais além que esquecer de si mesmo, entrega-lhe o coração inquieto.
O eu-lírico, anulado em seu mundo enevoado, age como se o mundo ilusório fosse uma luz no final do túnel ou uma forma de suportar, por alguns momentos, a dura realidade e o sem sentido da vida.

14 de dezembro de 2010

A poesia de Bocage


Manuel Maria Barbosa du Bocage nasceu em Setúbal, no dia 15 de Setembro de 1765. Muito cedo revelou a sua sensibilidade literária, que um ambiente familiar propício incentivou. Aos 16 anos assentou praça no regimento de infantaria de Setúbal e aos 18 alistou-se na Marinha, em Lisboa. Depois foi embarcado para Goa, na qualidade de oficial. Inadaptado, findou desertando. Percorreu, então, as sete partidas do mundo: Índia, China e Macau, nomeadamente.
Regressou a Portugal em Agosto de 1790. Na capital, vivenciou a boémia lisboeta, frequentou os cafés que alimentavam as ideias da revolução francesa, satirizou a sociedade estagnada portuguesa, desbaratou, por vezes, o seu imenso talento. Em 1791, publicou o seu primeiro tomo das Rimas, ao qual se seguiram ainda dois, respectivamente em 1798 e em 1804.
No início da década de noventa, aderiu à "Nova Arcádia", uma associação literária, controlada por Pina Manique, que metodicamente fez implodir. Efectivamente, os seus conflitos com os poetas que a constituíam tornaram-se frequentes, sendo visíveis em inúmeros poemas cáusticos.
A sua saúde sempre frágil, ficou cada vez mais debilitada, devido à vida pouco regrada que levara. Em 1805, com 40 anos, faleceu na Travessa de André Valente em Lisboa, perante a comoção da população em geral. Foi sepultado na Igreja das Mercês.
A literatura portuguesa perdeu, então, um dos seus mais lídimos poetas e uma personalidade plural, que, para muitas gerações, incarnou o símbolo da irreverência, da frontalidade, da luta contra o despotismo e de um humanismo integral e paradigmático.
A obra poética de Bocage reflete bem as duas tendências poéticas do seu tempo: a neoclássica e a pré-romântica, com predominância desta última, prodigamente praticada na maioria dos seus sonetos. Os dois sonetos abaixo analisados exemplificam bem o que afirmamos:
*
Olha, Marília, as flautas dos pastores,
Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha: não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?

Vê como ali, beijando-se, os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores!

Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folhas a abelhinha pára,
Ora nos ares sussurrando gira.

Que alegre campo! Que manhã tão clara!
Mas ah! Tudo o que vês, se eu não te vira,
Mais tristeza que a noite me causara.

Observe-se a descrição da natureza, vista como um locus amoenus ao longo de quase todo o soneto (até ao final do 1º terceto), muito ao gosto clássico. Eles, no entanto, não são evocados por eles mesmos, por despertarem o sentimento estético da natureza, viva em suas cores, nuances, sons e formas. A sua descrição é convencional, repete o padrão próprio do Neoclassicismo.
Observe-se, ainda, o uso de um vocabulário alatinado (cadente, Zéfiros, ósculos) a presença da mitologia (Amores (Cupidos, filhos de Marte e de Vênus))
No último terceto, o eu-lírico esclarece que toda aquela paisagem paradisíaca só é possível na presença da amada (vv 13/14). Esta atitude de apresentar a natureza como reflexo do estado da alma do poeta, em função da presença ou ausência da amada, constitui um desvio que rompe com o cânone neoclássico, assinalando o forte pendor romântico do autor. Comparemos o soneto acima com outro abaixo transcrito:

Oh retrato da Morte, oh Noite amiga,
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga.

E vós, oh cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.

Este soneto, genuinamente pré-romântico, difere completamente do anterior. Nele, já não temos a linguagem amena, a natureza luminosa e diurna, o estado de serenidade do eu-lírico, vistos no anterior. Todo este estado de placidez paradisíaca cede lugar a uma situação absolutamente oposta, sombria e pessimista.
Nas duas quadras, o eu-lírico se dirige à “Noite amiga” e, logo a seguir, evoca-a como sendo o “retrato da Morte”. Neste primeiro momento, assistimos, portanto, à caracterização da noite (retrato da Morte, amiga, testemunha, confidente) e ao pedido desesperado do eu-lírico para que, uma vez mais, ela ouça os seus desabafos e os seus lamentos sombrios. Assim, o locus amoenus, que caracteriza a natureza do soneto neoclássico, é substituído pelo locus horrendus tipicamente pré-romântico e condizente com os estados de espírito melancólico, mórbido, sombrio, masoquista e infeliz do eu-lírico.
Não somente a paisagem torna-se tenebrosa, também os elementos da natureza diurna e ensolarada são substituídos por outros próprios das sombras. As abelhinhas e os rouxinóis cedem lugar a “mochos piadores”, com os quais o eu-lírico se identifica. É a estes “cortesãos da escuridade” e “inimigos da claridade” que deseja se associar, visando encontrar ajuda em sua “medonha sociedade”, para saciar de horrores a sua mágoa.
O estado de alma atormentado do eu-lírico é conseqüência da incorrespondência amorosa da “cruel” que o desdenha e o leva a delirar. O tom confessional do poema, a utilização de uma certa linguagem teatral (tom declamatório com presença de algumas interjeições e de exclamações) e o uso de vocabulário tétrico (Morte, escuridão, pranto, desgostos, cruel, escuridade, Fantasmas, piadores, medonha, horrores) nos remete a um ambiente próprio dum locus horrendus, como já dissemos antes.

2 de dezembro de 2010

Experimentalismo e sensualidade na poesia de Salette Tavares



Nascida em 1922 em Lourenço Marques, Salette Tavares, licenciou-se em Ciências Históricas e Filosóficas pela Universidade Clássica de Lisboa, em 1948. Foi bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian e do Conselho Superior de Investigações Científicas, da Espanha. Publicou vários livros de poesia.
O texto da autora, que vem a seguir, inscreve-se na linha poética da poesia experimental que, como se sabe, não obedece fielmente aos princípios da poesia concreta, da qual se originou, pelo fato de instituir-se como poesia aberta às novas experiências, tanto no que diz respeito aos aspectos visuais, quanto aos morfológico.
O poema "Poética", de Salette Tavares, inscreve-se na vanguarda, na medida em que rompe o automatismo que respalda a obra de arte tradicional, com o qual o leitor estava habituado. Daí a sua leitura ser um desafio a seguir outros caminhos em sua busca de uma leitura que o conduza a decodificação da mensagem. O texto da poetisa exemplifica com bastante precisão a dimensão da mudança provocada pela poesia experimental.

POÉTICA
Espelho mudo.....................lugar reflecte
..............................................o todo que me é dentro

Espelho cego ......................lugar repete
.............................................a voz que me é centro.

Espelho mundo .................lugar intenso,
.............................................nos braços já, te prendo.

Espelho nego .....................lugar suspenso
.............................................um vidro só, relendo.
*
A leitura de Poética, um texto experimental, é diferentemente da que se realiza com os textos tradicionais, deve ser feita tanto do ponto de vista do significante, quanto do significado. No primeiro caso, a análise de palavras que são repetidas reiteradamente, como “Espelho” e “lugar”, bem como as que remetem para o significado, apontando para a função do espelho objeto, que se restringe a refletir apenas o que chega ao seu alcance.
Esse poema, produzido na fase inicial do experimentalismo poético, não permite que seja claramente percebida a desconstrução do discurso. Todavia, ao abrir-se para várias leituras, o texto assume a característica fundamental da poesia experimental. Vale observar a forma como é trabalhado o espaço visual no poema: nele há um objeto – o espelho -, que estabelece uma comunicação direta com o que reflete sua lâmina.
O interessante na leitura desse texto é o fato do leitor, confrontado com a sua “decifração”, assumir o papel de espectador ativo, responsável pela compreensão tanto do aspecto visual da poesia, quanto do seu aspecto sonoro, buscado na repetição de palavras e de rimas alternadas, que conferem ao texto uma marcação de ritmo forte, que aponta para o conteúdo crítico do poema.
Não reside no aspecto lúdico, que a forma do texto apresenta, o que motivou a sua composição. A autora, o que interessa é o conteúdo crítico que essa forma veicula, desde a escolha do título “Poética”. Este título é o instrumento usado pela autora para desmistificar a poética tradicional portuguesa, veementemente rejeitada pelos experimentalistas, sob a acusação de que ela insiste em dar continuidade a um tipo de poesia feita apenas para a fruição prazerosa, para deleite da emoção e do sentimento, sem se dar conta dos graves problemas de ordem cultural, social e econômico que ameaçavam levar Portugal à deriva.
Poética, numa dentre as suas múltiplas leituras, parece sugerir a quebra de um espelho que se restringe a ser um repetidor de imagens (espelho nego / lugar suspenso /em vidro só, relendo), que o poema nega, rejeita, por ser metáfora da criação poética tradicional, sugerindo um outro espelho que, além de refletir, possa, como um prisma, refratar as multifacetadas arestas, os diversificados ângulos de visão da poesia (espelho) em sua relação o que reflete (lugar) e refrata.
Na mesma coletânea de poemas - Espelho cego -, de Salette Tavares, várias poesias expressam a linguagem do corpo inflamado pelo desejo (não sei como vais aparecer / presença tão concreta anunciada / vibrando-me o corpo a estremecer) :
*
Minha cintura dorida
adeus suspenso sem beijo
enchem-me o peito de fome
geme silêncio o desejo
Espremem-se frutas os braços
Bebem-se vinho de Março
grandes e belos cabelos
com vento no regaço.
Alvorecer de um segredo
boca que a fruta pede
mar de ouro generoso
onde o meu barco se perde.
//
Aqui onde chegaste
a tua voz trocou-se,
diz-me
onde puseste
o amor com que te sei.
//
Meridiano do meu corpo
limite raíz
encharcada d´água
a respirar-me no peito.
//
Vela de cera acendida
no teu olhar que morreu
eu sei-me
água, terra, morte,
vida, cor do vento sobre a pele,
eu sei-te
luz do ar no meu cabelo.
//
Mas não é somente a sensualidade que transita nos versos da poetisa, também o amor sentimento se faz presente em sua poesia, expressando os anseios do coração expectante na espera impaciente do ser amado ou do seu gesto de ternura, acariciante (que é que a mim espera quando assim espero? (...) É a carícia da mão na minha face / e o meu olhar repousado / o sorriso que passa / rápido / de mim a ti.), ou ainda da fruição do prazer, o fim da espera (Bebi, / eu te bebi / meu leite vinho destino / meus braços cabelos sonhos / em manhãs de desatino).
Zenóbia Collares Moreira . O itinerário da poesia feminina em Portugal.


24 de novembro de 2010

O lirismo de Cecília Meireles



O ecletismo que caracteriza a obra de Cecília Meireles não possibilita que esta seja identificada a este ou aquele estilo ou movimento literários. Apesar de ter sido contemporânea ao Modernismo, a autora permaneceu identificada com o Simbolismo, ao qual somava elementos formais hauridos no Classicismo e no Romantismo.

Marcada por uma extraordinária sensibilidade e por um intenso lirismo, Cecília irrompeu na cena literária, desde a sua estréia, como uma notável poeta lírica.


No poema que se segue, a autora exprime a sua forma particularíssima de perceber uma determinada rosa que contempla.

Vejo-te em seda e nácar,
e tão de orvalho trêmula,
que penso ver, efêmera,
toda Beleza em lágrimas
por ser bela e ser frágil.

Meus olhos te ofereço:
espelho para a face
que terás, no meu verso,
quando, depois que passes,
jamais ninguém te esqueça.

Então, de seda e nácar,
toda de orvalho trêmula,
serás eterna. E efêmero
o rosto meu, nas lágrimas
do teu orvalho... E frágil.

Como se pode constatar, Cecília personaliza a rosa, atribui-lhe sentimentos e, em sua visão pessoal e poética, vê no orvalho, que desliza tremulante sobre as suas pétalas, lágrimas de tristeza por ser bela e frágil, por sua vida efêmera.

A poeta deseja eternizar a beleza evanescente da rosa, por meio da poesia, para que jamais a flor caia no limbo do esquecimento, para que a sua lembrança permaneça decalcada nos versos que lhe dedica. Na estrofe final, a poeta se volta para a sua própria realidade, percebendo a semelhança de sua condição de ser frágil, transitório e perecível com a da rosa.

Zenóbia Collares Moreira



13 de novembro de 2010

A Poética de Almeida Garrett


O erotismo e o sofrimento que, simultaneamente, transitam pelos versos de João da Silva Leitão de Almeida Garrett são as vigas mestras que sustentam a sua expressão romântica. Assim, em cada poema de As Folhas Caídas é configurada a duplicidade do EU romântico, plenamente consciente dos seus erros, aos quais se sente preso e sem condições de escapar aos seus grilhões.
Erotismo e sentimento avultam como elementos indissociáveis do fazer poético de Garrett e, consequentemente, constituem o cerne do dramatismo que se observa em sua obra, decorrente de sua impossibilidade de escolha, considerando que qualquer escolha implica em rejeitar a outra, e o eu-lírico não tem condições de assumir posições radicais que eliminaria a recorrente presença de um “TU” feminino, cheio de mistério, fonte do conflito e dos lamentos do poeta. Daí a presença dominante nos poemas de As Folhas Caídas de uma permanente tensão entre dois termos antitéticos – LUZ e TREVAS- que dinamizam seu discurso e exprimem a constituição dialética do universo mental de Almeida Garrett.
Em sua poética, LUZ e TREVAS impõem-se como elementos indissolúveis, que se completam em uma estranha relação na qual um representa a negação do outro. Como escreve António Saraiva, hoje é possível enxergar as “limitações na poesia romântica. Toda ela é uma poesia de alcova: nunca o homem e a mulher caminham de mãos dadas. É, por outro lado, uma poesia de frustração, pois todo o amor acaba na tragédia da separação ou da saturação; a amargura sucede ao prazer”. É ainda uma poesia que se apóia em contrastes, em oposições. Nestes termos, o perfil da mulher é configurado em dois extremos: ela é anjo ou demônio, é a salvação ou a perdição do homem, refletindo a realidade social de uma época em que o dinheiro era a mola propulsora de todos os interesses e a situação da mulher era, ainda, de subalternização e de dependência ao homem. Nesse universo regido pelo poder masculino, a condição existencial da mulher não oferecia muitas variantes, oscilando entre a veneração do homem, o casamento, a vida acomodada de esposa, de mãe e a degradação derivada da prostituição a que muitas recorriam para sobreviverem.
Vale sublinhar que a publicação de As Folhas Caídas causou escândalo. A puritana sociedade oitocentista não estava preparada para receber com naturalidade a confissão aberta dos sentimentos e dos desejos masculinos que, pela primeira vez irrompia e implodia os códigos convencionais da tradição clássica que impunham à contensão do discurso poético e a expressão do amor sensual. Antes de Almeida Garrett, poetas do Pré-Romantismo, como José Anastácio da Cunha, Américo Elísio, Francisca de Paola Possolo da Costa, a Viscondessa de Balsemão e Bocage, ousaram escrever poemas impregnados de uma audaciosa sensualidade, de erotismo explícito. Todavia, com exceção de Bocage, os demais nunca as publicaram em vida.
As suas obras foram publicadas, postumamente, por poetas que descobriram seus manuscritos, sentiram o valor da obra inédita e encarregaram-se de publicá-las. A obra do poeta José Anastácio da Cunha, por exemplo, foi publicada por Garrett, em 1939, quarenta e dois anos após a sua morte (1887). É possível que José Anastácio tenha exercido influência sobre Garrett no sentido do encorajamento para a exteriorização das suas emoções e sentimentos mais profundos, dando rédeas soltas ao seu latente erotismo.
Com efeito, o que mais transparece nos poemas garrettianos de As Folhas Caídas é o indiscutível abandono de tudo quanto é convencional (não sincero) nos poetas árcades e a adesão a tudo quanto é anti-convencional (sincero e espontâneo) nos poetas pré-românticos. Daí o poeta assumir inteiramente atitudes confessionais, de conotações eróticas e sentimentais, de forma direta e sem disfarces, tal como faziam os pré-românticos antes citados. Todavia, ainda há muita contensão e racionalização do sentimento amoroso em sua poesia. De fato, Garrett não ousou exprimir a emoção da paixão e a força impulsionadora da sensualidade, como fizera José Anastácio da Cunha.
O jogo poético em As Folhas Caídas reside na antinomia, continuamente estabelecida, entre AMOR SENSUAL e AMOR PLATÔNICO, bem como na reiterada oscilação do Eu-Lírico entre um e o outro, entre a pulsão pelo amor sensual, que o prende irrecorrivelmente ao presente, e o amor espiritual, platônico e puro que o fascinou no passado, restando-lhe apenas a saudade dele, no presente.
Evidencia muito bem a diferença entre o QUERER (sensual) e o AMAR (espiritual) o poema Não te amo, no qual é posto em prática o jogo antitético entre as exigências do corpo e as solicitações do espírito. Em verdade, o ideal de amor platônico que, poeticamente, Garrett acalentou vivenciar ficou como uma quimera, um desejo adiado para sempre, um sonho impossível de realizar na vida real.

Não te amo

Não te amo, quero-te: o amar vem d'alma.
E eu n'alma - tenho a calma,
A calma - do jazigo.
Ai! não te amo, não.

Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a vida - nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai, não te amo, não!

Ai! não te amo, não; e só te quero
De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.

Não te amo.
És bela; e eu não te amo, ó bela.
Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,
De mau feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.



27 de outubro de 2010

Um poema de Ramos Rosas


Caminha para a minha fronte

Poderemos acaso erguer uma torre de sossego

como se estivéssemos no interior do mundo?

Nós somos descendentes dos répteis
e por isso amamos o letargo solar entre sombras vegetais
Poderíamos assim ouvir o rumor da ausência
como um rosto entre longínquas nascentes
e a pulsação das pedras o obscuro júbilo do fogo
o sorriso cintilante de um regato
Estaríamos na intimidade do olvido
como a pura ignorância de uma sombra lúcida
Seríamos uma erva escrita pela saliva da terra
numa adequação vibrante e sóbria
Veríamos ascender o obscuro em lâmpadas nuas
e toda a espessura seria dúctil e porosa
A identidade encontraria a origem numa flora leve
a hospitalidade de uma terra
nas constelações de argila de basalto e esterco

Nem sempre é fácil a compreensão das poesias de Ramos Rosa, logo à primeira leitura, notadamente em razão da ambigüidade resultante do enfoque metafísico e da presença de elementos conflitantes que estabelecem relações de antagonismo no poema.

A composição “Caminha para a minha fronte” principia com uma indagação do poeta para a qual não pretende encontrar respostas, porque sabe que estas não virão, simplesmente por não terem existência. Sua indagação não passa de mero pretexto para suas ponderações acerca do que nos homens é desumano.

A intencionalidade da sua mensagem, no entanto, é expressar a sua preocupação de ordem metafísica. Todavia, a presença de idéias antagônicas joga-nos no campo das suposições, numa procura de do que há de insondável e velado na subjetividade do ser humano. 

Zenóbia Collares Moreira



21 de outubro de 2010

Francisca de Paola Possolo da Costa (Francília)



Francisca de Paola, além de poetisa foi também ficcionista, autora de um romance, Henriqueta de Orleans ou O Heroísmo, cujo sucesso ensejou duas edições seguidas do mesmo. Foi amiga pessoal de Castilho com quem manteve assídua correspondência. Deixou incontáveis sonetos e elegias inspirados em seu ardente amor por Jónio, nos quais dá livre desafogo à sua paixão em versos impregnados de ousada sensualidade. Esses apaixonados poemas cessam após a morte do marido. Da lira enlutada da poetisa, passam a emanar somente versos toldados pelo sofrimento inclemente que lhe dilacera a alma. A melancolia, a angústia da solidão e do bem irremediavelmente perdido às vezes refinam em desespero. Conseqüentemente, a sua poesia torna-se uma viva expressão da dor da ausência e do desejo de libertação na morte. Francília inscreve-se entre os poetas pré-românticos que expressam, em suas poesias, a paixão e o erotismo que envolvem os seus sentimento:


Graças aos Céus, chegou enfim o dia
Este dia feliz, tão suspirado,
Em que a tua presença, Jônio amado,
Virá encher minha alma de alegria! 
A tristeza mortal, que me oprimia,
Em risonho prazer se tem mudado,
Meu coração de suspirar cansado,
Respira livre de melancolia. 
Já a mimosa esperança me figura
O som da tua voz... alguns espaços,
Já cuido ouvir-te as frases de ternura. 
Meu bem...que te suspende? Apressa os passos, 
Oh!... Vem antes que chegue a noite escura,
Vem suspirar de amor, entre os meus braços.

O soneto abaixo é mais um dentre os vários em que a poetisa manifesta o desejo e o ardor por Jônio, pseudônimo do marido a quem dedica a maior parte dos seus poemas, sejam os sonetos escrito quando ele ainda vivia, sejam nos sonetos e poemas compostos após a sua morte:

Que me sucede, oh Céus! Eu reclinada
Nos braços do meu bem! Eu apertando
Ao peito a sua mão, seu rosto olhando,
Em amantes transportes enlevada!
Ventura, posso crer-te? Eu abraçada
De Jônio, por quem vivo suspirando!
Inda estou receosa, duvidando,
Que para sempre a ele estou ligada.
Doce Jônio, meu bem, já a teu lado...
Mas Deuses, aonde estavas... aonde estou eu?
Quem ma aparta de ti, Jônio adorado?
Ah! que só foi um sonho...oh justo Céu!
Ou me dá meu bem, o meu amado,
Ou dure eternamente o sonho meu.
*
Na série de composições escritas na fase do luto pelo marido, Francília transfere para a sua lira a intensidade da dor pela perda do homem amado. O confessionalismo típico da poética pré-romântica intensifica-se, o cenário que serve de pano de fundo para a expressão de sua mágoa e saudade é o locus horrendus, a paisagem sombria e lúgubre, árida e medonha, condizente com a escuridão que a poetisa traz dentro de si. Os três sonetos que se seguem são exemplares dessa vertente da poesia da autora, toda ela impregnada por sombria amargura:
*
Que sítio tão medonho!
Céus que horrores!
Que selva tão extensa, e tão sombria!
Seca e rebelde, a terra aqui não cria.
Mimosa relva, variadas flores!
Aves de agouro, mochos piadores
Aqui vêm ocultar-se à luz do dia.
E do negro cipreste, à sombra fria,
Soltam agudos, fúnebres clamores!
Pavoroso lugar, a Natureza
Para mim te criou expressamente,
Tu só podes fartar minha tristeza.
Aqui verei quebrar-se lentamente
Tênue fio, que a vida me tem presa!
Aqui meus dias findarei contente.

#
Neste bosque medonho, onde somente
Brilha o sol um instante cada dia,
Aqui onde da noite a mais sombria
O silêncio horroroso é permanente.
Aqui de amargo pranto, ocultamente
Inundarei a terra, seca, e fria;
Aqui meus ais, no seio da agonia,
Enviarei aos ares, livremente.
Desgostosa da vida, e fatigada
De suportar os duros, os cruentos,
Fatais pesares, de que estou cercada.
Quero ao Mundo fugir alguns momentos,
Enquanto a morte, em vão por mim chamando,
O termo não vem por a meus tormentos!

O lirismo de Francília é um diálogo permanente com a sua alegria ou com a sua dor. Intimista, confessional e cheia de paixão, sua poesia torna-se um discurso contínuo do eu sobre o outro - no caso Jônio. Daí a dicotomia que a caracteriza, na medida em que seu estro passa da luminosidade dos dias afortunados para a sombra corrosiva da desventura que a acompanhará até que a morte, tão desejada e suplicada, venha silenciá-la. Dentre as poetisas pré-românticas, Francília é a que mais se aproxima da linha poética de Elmano Sadino – Bocage – no que tange a sua evocação recorrente do locus horrendus, pela dramaticidade que imprime à expressão da dor e da saudade que a consomem.


By Zenóbia Collares Moreira


15 de outubro de 2010

O lirismo pré-romântico da Marquesa de Alorna.


D. Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre – conhecida na História da Literatura Portuguesa pelo pseudônimo arcádico de Alcipe - nasceu em Lisboa no ano de 1750. Aos oito anos de idade foi mandada para o convento de Chelas, acompanhando sua mãe, mandada para a clausura pelo Marquês de Pombal, ao mesmo tempo em que seu pai- o Marquês de Alorna - era encarcerado no forte da Junqueira por suspeitas de estar envolvido na conspiração contra o rei D. José I. Libertada aos 26 anos, logo conheceu um militar alemão, o Conde de Oeynhausen, que, tomado de paixão pela bela Alcipe, não hesitou em tornar-se católico para desposá-la. A Marquesa faleceu em 1839, aos 89 anos de idade. deixando uma vasta obra literária manuscrita, publicada postumamente por uma das suas netas.
Sua poesia, como a muitos poetas seus contemporâneos, segue as duas tendências literárias coexistentes na segunda metade do século XVIII e primeiras décadas do século XIX: o Arcadismo e o Pré-Romantismo.
O soneto que vem a seguir tematiza a melancolia, tão cara aos pré-românticos, com a mesma suavidade que perpassa o lirismo da poetisa. Talvez por influência da formação clássica que recebeu, Alcipe não dá rédeas soltas ao sentimentalismo. Este passa sempre pelo crivo da razão, torna-se suave, delicado, lembrando freqüentemente a retórica camoniana.

Tu, Deusa tutelar da solidão,
Amável sombra, ó melancolia,
Aproxima-te, rouba-me a alegria
Que turba a suavidade ao coração.
Não prives o meu peito, Ninfa, não.
Da tua triste e doce companhia,
Que suspira por ti um e outro dia
Quem de amar-te só faz consolação.
E não pode a que vive suspirante
Viver entre o tumulto muito espaço,
Sem que faça o seu mal mais penetrante.
Atende, ó Ninfa, o rogo que te faço:
Não demores mais tempo o doce instante,
Os dias tristes, que eu tão triste passo.

De modo geral o lirismo pré-romântico da Marquesa de Alorna nunca é densamente ensombrado pela Musa Negra dos desesperados. O soneto abaixo faz incursões no panorama sombrio do locus horrendus, mas sem o caráter hiperbólico dos elmanistas. Seu estro é suave, a expressão da dor é contida, sem grandes apelos ao sentimentalismo:

Escassamente o sol já se mostrava
Entre a sombra que as luzes lhe encobria
Dos pássaros o canto que se ouvia
A ternura e saudades inspirava.
Já o mocho nocturno se escutava,
Que o retorno das trevas prevenia;
O terror que no peito meu descia,
Triste pranto dos olhos me arrancava.
Larguei a voz então aos surdos ventos,
Que nas cavernas ásperas, com brados,
Convocavam os sustos macilentos;
Aos soltos ais, nos montes espalhados,
Não respondem os seres sonolentos,
Que não há quem responda aos desgraçados.

No soneto abaixo, Alcipe intertextualiza o soneto II, de Camões, Eu cantarei de Amor tão docemente, por sua vez intertextualizado de um soneto de Petrarca:

Eu cantarei um dia da tristeza
Por uns termos tão terrenos e saudoso,
Que deixem aos alegres invejosos
De chorarem o mal que lhe não pesa.
Abrandarei das penhas a dureza,
Exalando suspiros tão queixosos,
Que jamais os rochedos cavernosos
Os repitam da mesma natureza.
Serras, penhascos, troncos, arvoredos,
Ave, fonte, montanha, flor, corrente,
Comigo hão-de chorar de amor enredos.
Mas ah ! que adoro uma alma que não sente!
Guarda, Amor, os teus pérfidos segredos,
Que eu derramo os meus ais inutilmente.

Um dos poemas mais bem conseguido da Marquesa é a cantata que compôs para o falecido marido. A doçura das palavras, a serenidade da dor, o sentimento da perda e da saudade pungentes derramam-se pelas páginas em braço como uma suave cascata de lágrimas. É tocante a expressão do amor, da aflição e da dor intensificados pelo refrão Que pavor / Espalha em todo o campo a minha dor!... que semelha o tanger cadenciado do sino fúnebre, soa como um réquiem solene, que irrompe da alma da poetisa:

Oferenda aos mortos
[cantata]
Aquele outeiro sombrio
Está de névoas coberto;
Escorre entre canas, perto
Fraco e murmurando, um rio.
Naquele negro pinhal,
Como tocha funeral,
Brilha modesta candeia,
Que ao pastor pobre alumeia,
Com a luz embaciada;
Vem por corvos arrastada
A tarde; A luz apenas das estrelas arde!...
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!...
Das frestas dos edifícios
Vergonhoso mocho voa,
Ecoam seus uivos atroa
Os Génios dos malefícios;
Saem Fadas peregrinas
A dançar sobre as ruínas,
E vêm por entre perigos
Gnomos, trasgos, inimigos.
Alumeia O pirilampo incerto esta coreia.
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!...
Estão todas apagadas
As luzes da Outra-Banda;
Pelas praças ninguém anda,
Vagam as sombras caladas,
Naquele triste convento
Dobra o sino sonolento;
O ar c’os sons esmorece,
O horizonte empalidece;
O vapor outumnal
Cobre-o de um véu fatal,
Sombrio.
Suspira o vento e nasce o calafrio.
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!...
Vêm aflitos pensamentos,
Vêm desde Sintra queixosos,
Vagar ternos e medrosos
Ao redor de monumentos...
A campa de Isa alvejando,
A escuridão vai cortando...
Dorme a quieta africana...
Dormirá a raça humana...
Não rompe o mundo
Letargo tal, um sono tão profundo.
Da manhã,
Para os mortos, a graça, a luz é vã.
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!...
Com teu clarão moderado,
Que objecto me estás mostrando?
Que me estás afigurando,
Crepúsculo descorado?...
Sombra majestosa e cara,
Que nas mãos da Parca avara
Enches todo o meu sentido!
És tu, Armínio querido?
Se te retrata a saudade,
Apaga as cores a realidade,
Entretanto,
O teu túmulo lava este meu pranto.
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!...
Sobre o teu marmóreo altar,
Onde oculto me magoas,
De plátano cinco c’roas
Venho hoje depositar.
Recebe, Armínio, a mais pura;
Duas leve-as a ternura,
De meu pranto comovida,
A Marcia, a Lilia querida:
Os dois penhores
Dos nossos tristes, doces amores,
Condoída,
Of’reço duas, of’recera a vida.
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!...

Apesar das dificuldades econômicas que a viuvez lhe acarretou, a Marquesa de Alorna transformou a sua residência num foco de ebulição cultural, onde se debatiam as novas tendências estéticas e literárias. Poetas como Bocage e Herculano, em diferentes momentos, freqüentaram os salões da poetisa, bem como o jovem Garrett.

Zenóbia Collares Moreira. Poetas do pré-romantismo português. 2001.