20 de agosto de 2009

A poesia de Glória Tupper, Layla Lauar e Mariza Lourenço.




Denominada como internáutica ou virtualista a poesia virtual já conquistou direito de cidadania no panorama literário globalizado, como uma das formas legítimas de manifestações poéticas do terceiro milênio. Glória Tupper, Mariza Lourenço e Layla Lauar - que fazem parte desse novo parnaso virtualista – são a prova insofismável da qualidade dessa literatura que a internet possibilitou existir numa outra realidade paralela à nossa.
As três poetas se inscrevem na vertente erótica da poesia contemporânea, percorrem os labirintos da sensualidade e da auto afirmação femininas que, em seus textos encontram a mais refinada expressão. A desenvoltura com que as três autoras fazem a abordagem do tema, a franqueza absoluta dos seus desinibidos discursos estão em consonância com o erotismo poético tão do gosto da lírica contemporânea feminina.
George Bataille ensina que, pelo erotismo, se transforma a atividade meramente sexual (esta concernente a todo animal) em uma “busca psicológica, em um momento de auto conhecimento e de questionamento do ser, configurando-se, assim, o erotismo, como um aspecto da vida interior do ser humano, que sempre é vivenciado como transgressão e enriquecimento”.(G.Battaille. O erotismo, p. 56)
Os poetas de ambos os sexos, desde a década de oitenta do século XX, lançaram-se nessa busca psicológica sobre a qual escreve Bataille ou simplesmente na busca transgressiva de desafiar os tabus culturais que durante tantos séculos cercearam, através de vários mecanismos da censura, a expressão da sexualidade e do erotismo na poesia. Qualquer poesia que ousasse transpor os limites desses tabus servia de argumento para rotular o autor como obsceno, libertino e quantos epítetos servissem para relegar o autor e a obra ao mais desprestigiado nível da escala da valorização estética.
Glória Tupper já foi o tema de um post, no qual analisei algumas das suas poesias, mesmo assim, não posso deixar de trazer a sua mais recente composição, postada recentemente em seu blog literário Avesso de Mulher, reafirmando, mais uma vez, a qualidade e o refinamento do seu lirismo erótico, reiterando a retórica da sensualidade em cada verso e a expressão da plenitude do desejo e do amor sensual em sua completude e beleza:

Sol e Lua

É madrugada silenciosa e fria
e teu cheiro envolve meu corpo.
de olhos levemente cerrados
Percebo tuas mãos deslizantes
Buscando meu desejo.
Teu tato me aquece
Teu hálito a minha boca beija
Somos calor intenso
Dançando em ritmo alucinante
Na cadência perfeita.
Corpos suados se misturam
Sensações se completam
Preencho-me de ti
Na noite que começou fria lua
E terminou quente sol.

Glória desconstrói a imagem tradicional da mulher e resgata a identidade feminina. O homem perde o seu papel de parte ativa e dominante, assumido pela mulher a quem cabe conduzir a relação a dois. Ele é o parceiro, o cúmplice da mulher na fruição recíproca dos prazeres da carne, do amos correspondido ou simplesmente consentido, desejado.

Renda-me
Toma de assalto a minha alma
Rouba meu desejo proibido
E me faz tremer... de desejo
Domina-me
Imobiliza as minhas pernas
Invade a minha boca
E vasculha os bolsos do meu corpo
Assalta-me
Tira de mim as minhas riquezas
E eu me entrego incondicionalmente
Rendo-me a ti.
Layla Lauar tem um blog literário – Ressaca de Homi – no momento com as visitas suspensas. Layla, como Glória, assume o exercício da poesia erótica. No texto que se segue, a poeta se espraia no domínio de Eros e da escrita resgatadora da sexualidade feminina, é um canto de exaltação à harmonia do corpo com o amor consentido e consumado.

minha pele branca e nua
é a tua tela
desenhada à vela e fogo
cera ardente a cair
sobre o meu corpo
no mais
a minha dor calada
o meu prazer gritado
me saber
marcada e tua
somente tua
para todo o sempre
amor!

Layla não amordaça a expressão poética, não hesita em abordar temas ousados e transgressivos, não foge às temáticas eróticas que traduzem a perfeita comunhão dos corpos na realização do amor pleno que  abrasa a carne, que  atiça o desejo. O extraordinário nesta poesia é a forma refinada como o “delicado” tema é desenvolvido numa linguagem intensa que passa bem longe da vulgaridade. Poesia minimalista e substantiva, não desperdiça palavras e diz tudo:

apenas
bocas e línguas
apenas
braços e pernas
apenas
pele com pele
apenas
prazer e gozo
coisa pouca
para o tanto
que nossos corpos
se querem ter
quando estamos nós
um dentro do outro

Mariza Lourenço, além do blog Proseando com Mariza, tem ativa participação na revista eletrônica Escritoras Suicidas, que congrega uma grande quantidade de poetas talentosas. Mariza tem uma formidável e expressiva força verbal. Desenvolve uma prosa poética impecavelmente elaborada. No texto abaixo, a expressão de uma experiência amorosa frustrante assume tons de suave melancolia, revelando a intensa sensibilidade da autora e a sua habilidade na construção de um texto sintético, enxuto, sem rodeios metafóricos, quase áspero, apenas centrado na mensagem que quer comunicar, sem preocupações líricas.

A (R) Dor

meses noites chuva granizo neve (se houvesse) paixão (se houve, um dia) se confundem
nesse arremedo de vida que ensaio todo dia.
não se trata de tua pele, que arde, fogo em brasa, nesta alma em desarranjo com meu
corpo gélido e entorpecido de tanto se curvar
não se trata de teu cheiro, mas desta fenda maculada de onde ainda verte o resquício,
vermelho-vivo, da fúria dos ataques não consentidos ao meu sexo, ao meu corpo, à minha vida.
não se trata mais de ti (posto que de ti nada mais sei)
cópia de teu pai
modelo de teu filho
não se trata mais de ti, de teu cheiro ou de tua pele
mas da miséria do silêncio, da dor que não acaba, do horror da aceitação:
a nossa nunca foi uma história de amor.

E para terminar, mais uma magnífica prosa poética de Mariza Lourenço, desta feita sem o suave timbre melancólico da anterior, quase um queixume, substituído por um tom de amargura, de rebeldia e de desafio de um eu poético inquieto com a sua condição existencial, fechando-se para o mundo. A linguagem despojada de adjetivação e de rodeios metafóricos, as frases curtas e bem pontuadas, a retórica da desilusão, da descrença e do fracasso mais reforçam o “processo de desconstrução” do qual fala o eu poético solitário, ensimesmado, puxando pelos fios da memória como que querendo exorcizar os demônios do passado.

Diário das Horas

I
bateram duas vezes à porta e minha disposição em abri-la é tão miúda quanto a certeza de que sobreviverei a mais um processo de desconstrução. não quero coadjuvantes. minha dor é egoísta. solitária. aguda. e de dor eu entendo como ninguém.
II
sou mulher de prantos.choro por tudo e nada. e o nada tem sido bem mais que tudo. choro manso pra despistar os demônios. choro baixo pra enganar meus fantasmas. ninguém desconfia de nada. e o mundo segue - presumivelmente - feliz.
sem mim.
III
sinto faltas essenciais: de algum amor, de alguma paixão, de algum sexo. e de tempestades. o que antes era profuso agora é reto. e esta linearidade me apavora. não estou preparada para viver em calma perpétua. quase morta.
ainda não.
IV
passei metade da vida levantando bandeiras e tentando compreender meus abismos. passei a vida inteira carpindo a dor alheia e perdendo meus sonhos em qualquer lugar. logo eu, que nunca soube advogar em causa própria, apostei todas as fichas no mesmo jogo.
e perdi.
V
confesso que fui muitas sem ser nenhuma. confesso que me apaixonei demais e amei de menos. confesso que não me lembro de alguns cheiros. de algumas carícias. e do meu primeiro beijo. se, hoje, vomito lembranças é pra justificar esta minha condição de puta.
de um homem só.
VI
entre meus dedos, o terço - presença física de minhas crenças - queima. ando esquecida dos mandamentos. e já não sei onde foi parar meu último pecado. aquele do qual nunca me arrependi. a imagem da Virgem me enxerga, entende e consola.ah!, Senhora, estou nua.
tem piedade de mim.
VII
foi por minha conta e calculado risco que me meti em claustro (mais uma vez) e calei a boca (mais uma vez). batem novamente à porta. (estou assustada). do lado de lá esperam pela mulher de sempre. pelo riso fácil. pela boca pródiga em contar histórias
do lado de lá esperam por respostas que não tenho.
nem pra mim.
Os textos de Glória Tupper, de Layla Lauar e de Mariza Lourenço são uma amostragem da literatura que se pratica no silêncio dos blogs e confirmam plenamente o valor e a importância da literatura virtualista. As três escritoras, pela qualidade estético-literária do que escrevem, fariam sucesso no meio intelectual, se publicassem suas composições. São autores com elas que justificam o interesse dos estudiosos do fenômeno literário em dar a devida atenção para as obras de poetas e de ficcionistas que vicejam em blogs e sites existentes em todos os continentes, pelas revistas literárias e pelas academias literárias que congregam os escritores e as escritoras, dando legitimidade às suas produções.
A força com que vem crescendo a prática da literatura no mundo virtual, ensejou o reconhecimento de um novo movimento denominado Virtualismo. Movimento espontâneo, sem sistema de normas, sem um corpo doutrinário, como foram a maioria dos movimentos que vicejaram no mundo real até o advento do neoclassicismo. O Brasil já participa desse movimento literário desde maio de 2001, quando foi fundada a ABVL- Academia Virtual Brasileira de Letras-, constituindo uma dentre as inúmeras academias virtuais existentes em várias partes do mundo, abrigando poetas e ficcionistas que dinamizam o movimento Virtualismo, formando uma espécie de rede de poesia na literatura universal virtual.


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